quinta-feira, 4 de junho de 2015

PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E PERCEPÇÕES DA MEMÓRIA EM UMA CIDADE CENTENÁRIA

 Ana Tereza Nunes1

A ideia de centenário pode nos oferecer caminhos distintos, se não opostos, sobre a importância desse momento no imaginário individual e coletivo em que se insere. Uma sociedade centenária pode parecer menina, perto de tantos outros espaços ocupados, modificados e ampliados pelo homem na forma das cidades. Assim como pode parecer uma senhora de idade diante de novas aglomerações sociais ainda em formação e expansão. As cidades são a representação burocrática, a própria regulamentação da vida humana coletiva, concentrada num dado local; devidamente registrada em documentos datados de sua emancipação enquanto tal representação. Contudo, as sim como ao apreender a idade de uma pessoa somos conduzidos a levar em conta as experiências vividas, e não tão somente a data de nascimento em cartório, ao buscar compreensão sincera quanto à subjetividade de uma cidade centenária, é preciso considerar a experiência histórica vivenciada para além dos dados e registros oficiais, de sua data de emancipação anualmente comemorada, mas, sobretudo, o que foi vivenciado em meio aos diversos processos formativos da memória que permanece, que delineou, e que intervém no modo de vida da população ainda em tempos atuais.


Mais significativos que os bens tombados, que as representações arquitetônicas do passado preservadas, que quaisquer legislações e órgãos que obriguem à educação patrimonial, a atribuição de valor a ideia de um ano centenário reside nas pessoas. Ao ser anunciada e exposto um aniversário de cem anos, a população nativa e os que aqui vieram a residir ao longo do tempo, os sujeitos, como partes dessa sociedade começam a pousar o olhar no passado, começam a identificar o que foi rompido , deixado para trás, assim como a continuidade de determinadas tradições e comportamentos. 
Um passado que, apesar de saberem ser a origem do que experimentam na São Gotardo contemporânea, e que pode lhes parecer infinitamente distante inicialmente, mas que se aproxima ao longo de um ano como o centenário; se aproxima ao ser notificado, exposto em forma de fotografia, vídeos, que é apresentado em forma de entretenimento, confraternizações culturais capazes de unir o prazer das novas gerações por meio de tradições antigas, através da ocupação de espaços públicos, através de intercâmbio contínuo ao longo de ano desse conhecimento sobre as manifestações humanas em diferentes temporalidades.
São Gotardo conta e reconta sua história desde seu surgimento, enquanto um primitivo e limitado arraial em meio à região denominada por mata da Corda. A fundação desse e outros primitivos arraiais se originam nas comentadas expedições que penetravam o sertão, ou o interior de nosso país e estados para fins de ocupação produtiva desses territórios. Em Minas Gerais tais processos, ao contrário do que podemos inferir ao estudar a história desse estado, ocorreram não apenas visando à fiscalização da cata do ouro e o comércio de pedras preciosas, mas também enquanto processos de apropriação do espaço, de povoamento gradual, construindo fazendas próximas, erigindo capelas e iniciando a ideia de sociabilidade e coletividade entre esses primeiros habitantes; a denominação “Serra da Mata da Corda” é justificada pela altitude de cerca de 1000 metros em que se situa o município.

Data de 1836 a chegada determinante de Joaquim Gotardo de Lima e sua família, procedentes do arraial de Carrancas, Sul de Minas, ao sopé de uma colina à margem da Mata da Corda, em posição geográfica Oeste – Triângulo, onde hoje se encontra a cidade São Gotardo. O que se registrou daquele momento em diante está intrinsecamente ligado ao manejo e cultivo contínuo da terra, reconhecidamente fértil e motor econômico e social da região.
Em meio às construções materiais e subjetivas que hoje constituem a cidade de São Gotardo existiram outros nomes, denominações regulares e informais para esse território no fim do século XIX e meados do século XX, questões quanto pertencimento legal a diversos outros municípios já consolidados nesse período posterior à emancipação local; dentre os adjetivo e nomenclaturas que permanecem na coletiva memória registra-se a denominação de São Gotardo por "Arraiá da Confusão", tal nome se tornou famoso e alvo de discussões e versões para causa primária do mesmo. Sabe-se que independente dos causos e histórias oralmente repassados às gerações subsequentes, a ideia de um local permeado por confusões e conflitos sempre sobressai, e o assunto é constantemente retomado em função do córrego que atravessa a cidade de mesma denominação: confusão.

O desenvolvimento de São Gotardo se equipara aos de mais municípios mineiros de pequeno porte e orientados pelas propriedades e produção rural. No imaginário e identidade local foram inseridos comportamentos ligados à trad ição do campo. As festas, confraternizações orientadas pela religião, o carre  ar dos bois, as cavalgadas, a prática da viola caipira, a inserção do congado, da folia de Reis, e posteriormente da capoeira, se deu em interação constante com as manifestações de origem afro-brasileira em razão da habitação cada vez maior desse espaço pelos sujeitos representantes de tais segmentos. Nesse sentido, é possível inferir que o patrimônio cultural imaterial em evidência no município atualmente, o que se considera de grande valia preservar e proteger contra o esquecimento, encontra subsídio no que fez parte do cotidiano literal dos que habitaram essas terras outrora, em seu surgimento.


A década de 70 representou um momento de mudança e ruptura com o padrão de
desenvolvimento linear dessa história e memórias co letivas em consolidação. A partir da criação da nova capital Brasília, o governo impleme ntou uma série de medidas para expandira malha  rodoviária do país e viabilizar maior contato entre as regiões do país, inclusive o espaço a que se denomina cerrado em que se insere o município de São Gotardo; tal expansão dessa malha rodoviária na década de 50 acelera significativamente o processo de ocupação dessas regiões. No início da década de 60, esta ocupação diminui e essas regiões são novamente esquecidas sendo colocadas em evidência nosa depois, visto a necessidade política administrativa nacional de estruturação da atividad e de agricultura em grande escala. O período militar, década de 70, é que volta a uma possível necessidade de atenção governamental em direção à região em que surge e pe rtence à cidade de São Gotardo.

É no contexto descrito acima que começaram a ser im plantados os primeiros projetos de colonização do cerrado brasileiro. Para isso, a participação do Estado foi intensa e decisiva. Adotou-se uma política agrícola de crédito subsidiado para custeio, investimento e comercialização, além de uma política de preços mínimos. (SHIKI, 1997; SALIM, 1986; FRANÇA, 1984).


Data de 1970 esse acordo entre Brasil e Japão deter minando cooperação técnica para o
campo da agricultura nessa região brasileira, e que interfere significativamente na história e percepção da ideia de centenário no que se refere à cidade de São Gotardo. Em Minas foram organizados três projetos de execução paralela, o Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba (PADAP), o Programa de Desenvolvimento do Cerrado (POLOCENTRO) e o Programa     de   Cooperação   Nipo-Brasileiro   para   Desenvolvimento   dos   Cerrados (PRODECER). O PADAP foi o primeiro programa de colonização do cerrado. Para a implantação do mesmo foram desapropriados 600 km e ntre os municípios de São Gotardo, Ibiá, Campos Altos e Rio Paranaíba, sendo que estaregião já contava com um latifúndio de 200 km2 respondendo o uso de reforma agrária para a desapropriação e implantação do projeto. Tal desapropriação se dá por meio do Decreto Federal n° 72.786 de 13 de setembro de 1973.

A  migração  em  território  nacional  da  população  de  o   rigem  japonesa,  sob  uma
perspectiva econômica no imaginário geral, com pretensões de alcance nacional e impactos significativos na participação brasileira no mercad o agroprodutor internacional, acarreta na aceleração do processo de modernização como um todo no município da São Gotardo. Foi estabelecida nesse momento uma nova modalidade de colônia nipônica no século XX, visto o assentamento de moradia desses imigrantes no município. Registra-se após a chegada dos japoneses a construção do Fórum local na referida l ocalidade, assim como a possibilidade de introdução de novas tecnologias da comunicação, com o o telefone e funcionamento dos correios. Consta que São Gotardo foi o oitavo munic ípio mineiro a possuir recurso telefônico.

Os processos de interação ocorridos nessa cidade, a cerca das práticas econômicas, religiosas, políticas e comportamentais após estabe lecimento da colônia japonesa que só podem ser explicitados mediante análise documentalque ultrapassassem dados quantitativos do projeto PADAP e alcancem os registros de memória da população local e imigrante sobre sua experiência interativa, sobre as apropriações e transformações ocorridas em via de mão dupla culturalmente. O ano do centenário se faz oportunidade propícia para que essas questões passem a permear a vida da população de Sã o Gotardo. A presença da comunidade japonesa em território local acelera radicalmente a modernização tecnológica e comercial da cidade de São Gotardo, sem que o mesmo município te nha perdido tradição cultural comportamental característica, e ocasionando em uma ampliação do conceito de prática cultural cotidiana através da adesão significativa de traços da cultura nipônica enquanto parte do comportamento social como um todo.

A comunidade nipônica apresenta à cidade de São Got ardo a prática cultural da qual descende, envolvendo-a de significados implícitos, uma vez que a difusão da mesma é dosada aos não integrantes da comunidade intencionalmente, mantendo elementos sob o conhecimento apenas dos imigrantes, em prol de uma identidade distinta dos demais, e realizando a manutenção de tais práticas culturais comportamentais em âmbito doméstico e coletivo entre os mesmos, mediante o espaço para ta l finalidade ABCESG (Associação Beneficente Cultural e Esportiva de São Gotardo), c omo instrumento para legitimação do vínculo com seu país de origem, independente da nova realidade em que se encontram.

Esse culto à Cultura Japonesa e a adesão local dess as práticas, medindo a proporção dessa interação, só é possível através do contato direto com os sujeitos desse processo, que ocorre ainda hoje no referido município, modificando os moldes dessas relações a partir de mudanças ocorridas desde a década de 1970 até o momento atual na sociedade em geral sangotardense. À medida que o imaginário imigrante se modifica quanto à sua própria cultura e sua subjetividade enquanto parte da sociedade brasileira, e nesse caso específica da sociedade de São Gotardo, se modificam as bases des sa interação. A cultura japonesa passa a mesclar seus elementos com a cultura local, constituindo uma nova prática comportamental em que não se distinguem qualitativamente o que é realizado sob moldes originais nipônicos, e o que é continuamente adaptado em prol e em razão de maior adesão em solo brasileiro, sangotardense.

A escrita historiográfica e a ideia de centenárioãos percebidas nessa ótica de forma que, necessariamente, conte com a concepção de Hist ória e Cultura em que estas caminhem no intuito de decifrar e revelar a subjetividade e/ou o sentido das ações e decisões sócio-políticas comportamentais que permanecem no tempo e memória local. Não há uma única história, ou memória, ou modo de contá-la ou de lhe fornecer publicidade de forma pronta, cristalizada, externa à população a que se direcion a. O conceito de cultura local e as interações e/ou apropriações em via de mão dupla ne ssa sociedade, anterior e posterior ao elemento imigrante, em suas diversas formas de inserção e convívio, revelam por si só uma complexa teia.

Nessa teia se vislumbra a possibilidade de se reconhecerem evidências práticas que contribuam para compreensão, não apenas teórico-aca dêmica do trato com a História e Cultura, sob um viés específico, mas que permitam, se não a compreensão, a experiência da população contemporânea, no ato do debater cotidian o, na inserção dessas reflexões em meio ao calendário comemorativo centenário, na disseminação desse conteúdo nos espaços formativos e educativos, formais e informais, nos eventos em praça pública, na imprensa audiovisual e escrita; uma tentativa de que nesse ano não seja forjada uma história centenária, e sim experimentados esses elementos materiais e imateriais que compõem o patrimônio histórico e cultural de São Gotardo.

1 Bacharel em História – UFU/ Universidade Federal d e Uberlândia. Atuante na Coordenação Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural de São Gotardo.

[São Gotardo, 07 de Maio de 2015.]


BIBLIOGRAFIA:

* Acervo do Setor Municipal de Patrimônio de São Gota rdo/ Documentação referente ao Inventário do Patrimônio Artístico Histórico e Cultural Local elaborado e anualmente atualizado em acordo com as exigências do IEPHA/MG.

ALMEIDA, Paulo R. ,KOURY, Yara A. História Oral e Memórias, Entrevista com Alessandro Portelli. História & Perspectivas, Uberlândia, 925 e 26): 27 -54, Jul./Dez. 2001/Jan./Jul.2002.

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SASAKI, Luiz Isamu. Portal do Cerrado. Belo Horizonte: O Lutador, 2008.


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