A ideia
de centenário pode nos oferecer caminhos distintos, se não opostos, sobre a
importância desse momento no imaginário individual e coletivo em que se insere.
Uma sociedade centenária pode parecer menina, perto de tantos outros espaços
ocupados, modificados e ampliados pelo homem na forma das cidades. Assim como
pode parecer uma senhora de idade diante de novas aglomerações sociais ainda
em formação e expansão. As cidades são a representação burocrática, a própria
regulamentação da vida humana coletiva, concentrada num dado local; devidamente
registrada em documentos datados de sua emancipação enquanto tal representação.
Contudo, as sim como ao apreender a idade de uma pessoa somos conduzidos a
levar em conta as experiências vividas, e não tão somente a data de nascimento
em cartório, ao buscar compreensão sincera quanto à subjetividade de uma
cidade centenária, é preciso considerar a experiência histórica vivenciada para
além dos dados e registros oficiais, de sua data de emancipação anualmente
comemorada, mas, sobretudo, o que foi vivenciado em meio aos diversos processos
formativos da memória que permanece, que delineou, e que intervém no modo de
vida da população ainda em tempos atuais.
Mais significativos que os bens
tombados, que as representações arquitetônicas do passado preservadas, que
quaisquer legislações e órgãos que obriguem à educação patrimonial, a
atribuição de valor a ideia de um ano centenário reside nas pessoas. Ao ser
anunciada e exposto um aniversário de cem anos, a população nativa e os que aqui
vieram a residir ao longo do tempo, os sujeitos, como partes dessa sociedade
começam a pousar o olhar no passado, começam a identificar o que foi rompido ,
deixado para trás, assim como a continuidade de determinadas tradições e
comportamentos.
Um
passado que, apesar de saberem ser a origem do que experimentam na São Gotardo
contemporânea, e que pode lhes parecer infinitamente distante inicialmente,
mas que se aproxima ao longo de um ano como o centenário; se aproxima ao ser
notificado, exposto em forma de fotografia, vídeos, que é apresentado em forma
de entretenimento, confraternizações culturais capazes de unir o prazer das novas
gerações por meio de tradições antigas, através da ocupação de espaços
públicos, através de intercâmbio contínuo ao longo de ano desse conhecimento
sobre as manifestações humanas em diferentes temporalidades.
São
Gotardo conta e reconta sua história desde seu surgimento, enquanto um
primitivo e limitado arraial em meio à região denominada por mata da Corda. A
fundação desse e outros primitivos arraiais se originam nas comentadas
expedições que penetravam o sertão, ou o interior de nosso país e estados para
fins de ocupação produtiva desses territórios. Em Minas Gerais tais processos,
ao contrário do que podemos inferir ao estudar a história desse estado,
ocorreram não apenas visando à fiscalização da cata do ouro e o comércio de
pedras preciosas, mas também enquanto processos de apropriação do espaço, de
povoamento gradual, construindo fazendas próximas, erigindo capelas e
iniciando a ideia de sociabilidade e coletividade entre esses primeiros
habitantes; a denominação “Serra da Mata da Corda” é justificada pela altitude
de cerca de 1000 metros em que se situa o município.
Data de 1836 a chegada determinante de
Joaquim Gotardo de Lima e sua família, procedentes do arraial de Carrancas, Sul
de Minas, ao sopé de uma colina à margem da Mata da Corda, em posição
geográfica Oeste – Triângulo, onde hoje se encontra a cidade São Gotardo. O que
se registrou daquele momento em diante está intrinsecamente ligado ao manejo e
cultivo contínuo da terra, reconhecidamente fértil e motor econômico e social
da região.
Em meio
às construções materiais e subjetivas que hoje constituem a cidade de São
Gotardo existiram outros nomes, denominações regulares e informais para esse
território no fim do século XIX e meados
do século XX, questões quanto pertencimento legal a diversos outros municípios
já consolidados nesse período posterior à emancipação local; dentre os adjetivo e nomenclaturas que permanecem na coletiva memória registra-se a denominação de São Gotardo por "Arraiá da Confusão", tal nome se tornou famoso e alvo de discussões e versões para causa primária do mesmo. Sabe-se que independente dos causos e histórias oralmente repassados
às gerações subsequentes, a ideia de um local permeado por confusões e
conflitos sempre sobressai, e o assunto é constantemente retomado em função do
córrego que atravessa a cidade de mesma denominação: confusão.
O
desenvolvimento de São Gotardo se equipara aos de mais municípios mineiros de
pequeno porte e orientados pelas propriedades e produção rural. No imaginário e
identidade local foram inseridos comportamentos ligados à trad ição do campo.
As festas, confraternizações
orientadas pela religião, o carre ar dos
bois, as cavalgadas, a prática da viola caipira, a inserção do congado, da folia de Reis, e posteriormente da capoeira, se deu em interação constante com as manifestações de origem afro-brasileira em razão da habitação cada vez maior desse espaço pelos sujeitos representantes de tais segmentos. Nesse sentido, é possível inferir que o patrimônio
cultural imaterial em evidência no município atualmente, o que se considera de grande
valia preservar e proteger contra o esquecimento, encontra subsídio no que fez
parte do cotidiano literal dos que habitaram essas terras outrora, em seu
surgimento.
A década de 70 representou um momento de mudança e ruptura com o padrão
de
desenvolvimento linear
dessa história e memórias co letivas em consolidação. A partir da criação da
nova capital Brasília, o governo impleme ntou uma série de medidas para
expandira malha rodoviária do país e viabilizar maior contato
entre as regiões do país, inclusive o espaço a que se denomina
cerrado em que se insere o município de São Gotardo; tal expansão dessa malha
rodoviária na década de 50 acelera significativamente o processo de ocupação
dessas regiões. No início da década de 60, esta ocupação diminui e essas
regiões são novamente esquecidas sendo colocadas em evidência nosa depois,
visto a necessidade política administrativa nacional de estruturação da
atividad e de agricultura em grande escala. O período militar, década de 70, é
que volta a uma possível necessidade de atenção governamental em direção à
região em que surge e pe rtence à cidade de São Gotardo.
É no contexto descrito
acima que começaram a ser im plantados os primeiros projetos de colonização do
cerrado brasileiro. Para isso, a participação do Estado foi intensa e decisiva.
Adotou-se uma política agrícola de crédito subsidiado para custeio,
investimento e comercialização, além de uma política de preços mínimos. (SHIKI,
1997; SALIM, 1986; FRANÇA, 1984).
Data de 1970 esse acordo entre Brasil e Japão deter minando cooperação
técnica para o
campo da agricultura nessa
região brasileira, e que interfere significativamente na história e percepção
da ideia de centenário no que se refere à cidade de São Gotardo. Em Minas foram
organizados três projetos de execução paralela, o Programa de Assentamento
Dirigido do Alto Paranaíba (PADAP), o Programa de Desenvolvimento do Cerrado
(POLOCENTRO) e o Programa de Cooperação
Nipo-Brasileiro para Desenvolvimento dos
Cerrados (PRODECER). O PADAP foi o primeiro programa de
colonização do cerrado. Para a implantação do mesmo foram desapropriados 600 km
e ntre os municípios de São Gotardo, Ibiá, Campos Altos e Rio Paranaíba, sendo
que estaregião já contava com um latifúndio de 200 km2
respondendo o uso de reforma agrária para a desapropriação e implantação do
projeto. Tal desapropriação se dá por meio do Decreto Federal n° 72.786 de 13
de setembro de 1973.
A migração em
território nacional da
população de o
rigem japonesa, sob
uma
perspectiva econômica no
imaginário geral, com pretensões de alcance nacional e impactos significativos
na participação brasileira no mercad o agroprodutor internacional, acarreta na
aceleração do processo de modernização como um todo no município da São
Gotardo. Foi estabelecida nesse momento
uma nova modalidade de colônia nipônica no século XX, visto o assentamento de
moradia desses imigrantes no município. Registra-se após a chegada dos
japoneses a construção do Fórum local na referida l ocalidade, assim como a
possibilidade de introdução de novas tecnologias da comunicação, com o o
telefone e funcionamento dos correios. Consta que São Gotardo foi o oitavo
munic ípio mineiro a possuir recurso telefônico.
Os
processos de interação ocorridos nessa cidade, a cerca das práticas econômicas,
religiosas, políticas e comportamentais após estabe lecimento da colônia
japonesa que só podem ser explicitados mediante análise documentalque
ultrapassassem dados quantitativos do projeto PADAP e alcancem os registros de
memória da população local e imigrante sobre sua experiência interativa, sobre
as apropriações e transformações ocorridas em via de mão dupla culturalmente. O
ano do centenário se faz oportunidade propícia para que essas questões passem a
permear a vida da população de Sã o Gotardo. A presença da comunidade japonesa
em território local acelera radicalmente a modernização tecnológica e comercial
da cidade de São Gotardo, sem que o mesmo município te nha perdido tradição
cultural comportamental característica, e ocasionando em uma ampliação do
conceito de prática cultural cotidiana através da adesão significativa de
traços da cultura nipônica enquanto parte do comportamento social como um todo.
A comunidade nipônica apresenta à
cidade de São Got ardo a prática cultural da qual descende, envolvendo-a de
significados implícitos, uma vez que a difusão da mesma é dosada aos não
integrantes da comunidade intencionalmente, mantendo elementos sob o
conhecimento apenas dos imigrantes, em prol de uma identidade distinta dos
demais, e realizando a manutenção de tais práticas culturais comportamentais em
âmbito doméstico e coletivo entre os mesmos, mediante o espaço para ta l
finalidade ABCESG (Associação Beneficente Cultural e Esportiva de São Gotardo),
c omo instrumento para legitimação do vínculo com seu país de origem,
independente da nova realidade em que se encontram.
Esse
culto à Cultura Japonesa e a adesão local dess as práticas, medindo a proporção
dessa interação, só é possível através do contato direto com os sujeitos desse
processo, que ocorre ainda hoje no referido município, modificando os moldes
dessas relações a partir de mudanças ocorridas desde a década de 1970 até o momento
atual na sociedade em geral sangotardense. À medida que o imaginário imigrante
se modifica quanto à sua própria cultura e sua subjetividade enquanto parte da
sociedade brasileira, e nesse caso específica da sociedade de São Gotardo, se
modificam as bases des sa interação. A cultura japonesa passa a mesclar seus elementos com a cultura local,
constituindo uma nova prática comportamental em que não se distinguem
qualitativamente o que é realizado sob moldes originais nipônicos, e o que é continuamente
adaptado em prol e em razão de maior adesão em solo brasileiro, sangotardense.
A escrita
historiográfica e a ideia de centenárioãos percebidas nessa ótica de forma que,
necessariamente, conte com a concepção de Hist ória e Cultura em que estas
caminhem no intuito de decifrar e revelar a subjetividade e/ou o sentido das
ações e decisões sócio-políticas comportamentais que permanecem no tempo e
memória local. Não há uma única história, ou memória, ou modo de contá-la ou de
lhe fornecer publicidade de forma pronta, cristalizada, externa à população a
que se direcion a. O conceito de cultura local e as interações e/ou
apropriações em via de mão dupla ne ssa sociedade, anterior e posterior ao
elemento imigrante, em suas diversas formas de inserção e convívio, revelam por
si só uma complexa teia.
Nessa teia se vislumbra a
possibilidade de se reconhecerem evidências práticas que contribuam para
compreensão, não apenas teórico-aca dêmica do trato com a História e Cultura,
sob um viés específico, mas que permitam, se não a compreensão, a experiência
da população contemporânea, no ato do debater cotidian o, na inserção dessas
reflexões em meio ao calendário comemorativo
centenário, na disseminação desse conteúdo nos espaços formativos e educativos,
formais e informais, nos eventos em praça pública, na imprensa audiovisual e
escrita; uma tentativa de que nesse ano não seja forjada uma história
centenária, e sim experimentados esses elementos materiais e imateriais que
compõem o patrimônio histórico e cultural de São Gotardo.
1 Bacharel em História – UFU/ Universidade Federal d e Uberlândia. Atuante na Coordenação Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural de São Gotardo.
[São Gotardo, 07 de Maio de 2015.]
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